Ah, o Amor! – COLUNA RECEITA DE ESCRITA, por Cláudia Moreira

 em Cláudia Moreira, Colunistas, Cultura

Estou andando no calçadão, quando escuto dois homens conversando sobre “levar uma mulher pra casa”. Essa mulher era Rayane. O catador de lixo falava com paixão sobre ela enquanto parava em todas as lixeiras para procurar latas de alumínio. “Ela foi minha primeira namorada”. De ouvido em pé, fiquei sabendo que Rayane não morava na mesma cidade que ele. Entrara em contato por meio de algum parente. Queria ter notícias do ex-amado. Ele já sonhava com o encontro e como estava feliz só de imaginar! Mas notei que o homem também tinha medo. Será que Rayane teria ideia do trabalho dele, da sua luta diária, da sua atual condição de vida?

Vou chamar o homem de José. Cabeludo, malcheiroso, vestido com trapos e um saco nas mãos. Ele estava nas nuvens, feliz como um adolescente. O amor e o desejo de sentir coisas bonitas naquela vida tão feia o faziam sorrir, mesmo lhe faltando alguns dentes na boca. José transbordava alegria. Já planejava ir buscar Rayane, viver com ela, dar e, ainda de quebra, receber carinho. Será que ele teria esse merecimento? Eu não conseguia me afastar daquela dupla dinâmica que caminhava sem pressa pela praia. Minha cabecinha criava inúmeros finais para a história e nem todos eram felizes.

O amigo só escutava, balançava a cabeça de vez e quando, sem querer quebrar o clima. Nenhuma palavra era dita. O que será que ele pensava? Enquanto isso, José ria, e eu podia ver Rayane, maravilhosamente linda, saindo de seus pensamentos, dançando, girando, abraçando… Ela se materializava ali, na minha frente. Não me internem, por favor!

Tive que me afastar do monólogo efusivo de José. Não havia mais como ficar colada naqueles dois. Fiquei imaginando o telefonema… José nervoso, catando letras para formar palavras que, talvez, nunca ouvira ou pronunciara. Rayane, por sua vez, curiosa e idealizando o bom partido que o primeiro namorado se tornara. Afinal, ele morava em uma das mais bonitas praias do Espírito Santo! Depois de uma mentirinha de ambos os lados, ele consegue passagem – a duras penas – para ir visitá-la. Ah, o amor! Chega à porta de uma casa de classe média, suando a bicas, e… não tem coragem de bater. O medo surge forte e com suas garras afiadas traz José para uma realidade crua: ele é um catador de latas, sem família, sem dinheiro, sem direito a sonhos. Sente vergonha. Sai correndo e se nega a tentar ser feliz.

 

Ilustração: @igor.baldez

 

Cláudia Moreira é mestranda em Escrita Criativa (Uniandrade/PR), formada em Letras e Jornalismo (Uniceub- DF), com especializações em Revisão e Produção Textual (FAE-PR), Desenvolvimento Sustentável (UNB-DF) e Master em Jornalismo (IICS-SP). Tem vários livros publicados, entre eles, Receita de Escrita e Revisando a Profissão de Revisor. É sócia-proprietária da Editora Ponto Vital (PR) e professora de Escrita do Solar do Rosário em Curitiba.

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