Cara-Amarrada – COLUNA RECEITA DE ESCRITA, por Cláudia Moreira
Cara-amarrada me recebe na clínica de fisioterapia. Olho a moça e, de imediato, contagio-me com o mau humor. Ela não sorri e, em nenhum momento, esboça um sentimento do tipo “seja bem-vinda”. Fico reparando no tratamento arredio e belicoso que se repete com os outros pacientes. Cara-amarrada, inclusive, briga com alguns deles. Imagino como é a vida dessa pessoa tão jovem e, com certeza, cheia de problemas. Quero sentir pena, mas sinto raiva. Fui picada por ela. Meu dia fica nublado, não rende e culpo cara-amarrada por isso.
No outro dia, a mesma moça me atende. Desta vez, fui preparada: sorriso, bom dia na ponta da língua e simpatia no buraco da agulha. Em troca, mais cara de poucos amigos. Insisto no otimismo e nas boas maneiras. Nada! Definitivamente, cara-amarrada não está de bem com a vida. Quero sentir compaixão, sinto mal-estar. “Volto pra casa abatida, desencantada da vida…” como canta Maria Bethânia na música “Ronda”. Que moça difícil de se fazer feliz!
Os dias se tornam rotina. Já estou na décima sessão e cara-amarrada permanece no seu mundo de pouca gentileza. Eu tento de todo jeito conquistá-la, tirar um bocado do peso que ela carrega, mas a frase do poeta Gentileza – gentileza gera gentileza – não está surtindo efeito. Acho que a paródia mau humor gera mau humor está ganhando na queda de braço. E agora, José?
Juro que pensei em delatá-la para o dono da clínica, mas cara-amarrada pode perder o emprego. Quero sentir empatia, sinto desprezo e revolta. Como as pessoas são tão antipáticas, meu Deus! Detesto ser maltratada.
De repente, lembro-me que já fui assim. Era uma época em que eu estava bem infeliz. Nada me fazia ser gentil com o outro. Era patada atrás de grosseria. A recordação me fez calar, me fez refletir, me fez persistir e me fez compreender cara-amarrada.
Estou quase terminando minhas sessões e cara-amarrada continua me olhando torto. Eu já não me contagio. Levo a ela muito amor, educação e minha leveza de sempre. Talvez isso a deixe mais raivosa. Fazer o quê? Acredito que ela vai conseguir virar borboleta logo, logo. Precisa apenas de um tempo. Existem lagartas mais lerdas que outras e que se apegam ao pesado do corpo rastejante. Só que não tem jeito. O lema da evolução é vai ou vai. Cara-amarrada tá indo…
Ilustração: @igor.baldez
Cláudia Moreira é mestranda em Escrita Criativa (Uniandrade/PR), formada em Letras e Jornalismo (Uniceub- DF), com especializações em Revisão e Produção Textual (FAE-PR), Desenvolvimento Sustentável (UNB-DF) e Master em Jornalismo (IICS-SP). Tem vários livros publicados, entre eles, Receita de Escrita e Revisando a Profissão de Revisor. É sócia-proprietária da Editora Ponto Vital (PR) e professora de Escrita do Solar do Rosário em Curitiba.