Índia, Eu? – COLUNA RECEITA DE ESCRITA, por Cláudia Moreira
“Não nasci numa tribo, mas tenho sangue índio correndo nas veias. Minha carinha bochechuda, os olhos puxados, mais a cor morena jambo, cabelos negros e lisos e a altura de 1,56 cm não negam isso. Tenho muita coisa do meu povo: amo uma rede, um peixe, um rio, a natureza e a família. Sou desconfiada também. Considero-me uma guerreira, uma aventureira…”
Assim, inicio minha biografia no livro Receita de (bolo) Escrita e me vem uma reflexão profunda sobre minhas raízes, meus ascendentes e descendentes. Eu tinha muita vergonha de ser índia, quando pequena. Em Manaus, lá para os idos de 1970, assumir uma identidade indígena era uma coisa ruim. Índios eram, como escreve o poeta uruguaio Eduardo Galeano, em uma crônica do Livro dos Abraços, “bobos, vagabundos, bêbados”. E eu não queria ser retratada desta maneira.
O titulo “indiazinha bonitinha” até parecia um elogio, mas era algo que agredia. Minha mãe conta que estava comigo em São Lourenço, Minas Gerais, quando um homem se acercou dela e perguntou aonde tinha me “pegado pra criar”, ou seja, adotado. Afinal, “branca com cara de portuguesa” como ela, não era possível ter uma filha “indiazinha bonitinha”. Não contente com a afirmação de que minha mãe era minha mãe, ele conclui: “ah, então, seu marido é índio, um Tuchaua”.
Meu pai tem todos os traços indígenas. Sua mãe era uma cabocla fazedora de peças de barro. Sua avó ou bisavó eram índias, de fato. Não conseguimos rastrear com precisão nossa origem porque, naquela época, nem todos tinham certidão de nascimento. Índios, então, nem existiam como cidadãos. Mas acreditamos que nosso sangue vem dos Tukano. Será?
Hoje me autodeclaro índia, com muito orgulho. E, talvez, por isso, meu filho Igor também se veja como tal. Ele busca o fio que nos conecta à ancestralidade dos povos originários. Quer ser batizado como índio e é um conhecedor de culturas de várias etnias. Ele, artista, inspira-se na natureza e na vida indígena para criar. O fio começa a ser remendado…
Já minha filha Tainá, com nome indígena e me sugerido por uma índia, enxerga-se como uma mulher preta. Amo isso! A família do pai tem o fio da ancestralidade ligado à África. Nosso Brasil é maravilhoso demais, com suas misturas de cores! Tainá participa de movimentos contra o preconceito e se engaja de corpo e alma na defesa da causa das mulheres pretas.
Sementes da mesma fonte, da mesma barriga brasileira que pariu seres humanos iguais, embora de cores diferentes. E eu saio orgulhosa com os dois irmãos de mãos dadas, como, de fato, deveria ser sempre. Agora, é só esperar quais novas cores vão chegar à família e, desta forma, brindar a diversidade e a beleza do colorido.
“Os índios são bobos, vagabundos, bêbados. Mas o sistema que os despreza, despreza o que ignora, porque ignora o que teme. Por trás da máscara do desprezo, aparece o pânico: estas vozes antigas, teimosamente vivas, o que dizem? O que dizem quando falam? O que dizem quando calam?” (GALEANO, 2022, p. 132)
Ilustração: @igor.baldez
Cláudia Moreira é mestranda em Escrita Criativa (Uniandrade/PR), formada em Letras e Jornalismo (Uniceub- DF), com especializações em Revisão e Produção Textual (FAE-PR), Desenvolvimento Sustentável (UNB-DF) e Master em Jornalismo (IICS-SP). Tem vários livros publicados, entre eles, Receita de Escrita e Revisando a Profissão de Revisor. É sócia-proprietária da Editora Ponto Vital (PR) e professora de Escrita do Solar do Rosário em Curitiba.